sábado, 25 de dezembro de 2010

Dia de Barbeq

O dia amanheceu radioso. Depois de assistir ao Nascer do Sol tantas centenas de vezes, por estes lados, ainda não consigo deixar de apreciar cada momento. Continuo a perder o fôlego a olhar para aquela bola imensa, vermelha, que começa por inundar o céu oriental e sobe, sobe sem parar, à medida que o vermelho fica laranja, o laranja fica amarelo, a imensa bola de fogo diminui de tamanho, a intensidade da sua luz rápido torna este deleite para os olhos num exercício doloroso. É então tempo para olhar os campos imensos inundados de luz, prontos para mais umas horas de canícula. Escutar os cantos de tantas aves. Ver as pessoas nas suas tarefas diárias. Tudo começa com os primeiros raios de sol de cada dia.

Ontem tivemos a ceia de Natal, caviar, salmão, para iniciar as hostilidades. Um pato deu a vida para nos satisfazer as papilas gustativas. Bom vinho de Bordeaux. Hoje churrasco brasileiro desde manhã cedo. Muita Castel.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Joyeuses Fêtes

 

Estamos a apenas três dias do Natal. Finalmente os trabalhos da estrada arrancaram de verdade. Tenho corrido de verdade. O estaleiro começa a ganhar forma. Pode ser…

Aqui no Mali, como em bastantes outros locais de África, os pais procuram casar as filhas logo que possível, i.e. a partir dos 12 anos. Para as mentes ocidentais, um homem maduro, para não dizer velho, casar com uma menina de doze anos pode ser comparado a pedofilia. Por aqui os homens podem casar com quantas mulheres puderem sustentar. O islão colocou um bocadinho de travão nisso ao limitar o número de possíveis esposas a quatro, mas por aqui o pessoal não sabe contar muito bem… Então e depois? Que isto é assim todos sabemos. Talvez. A curiosidade é que estes casamentos arranjados de filhas a iniciar a puberdade com homens velhos, já com outras mulheres, se verificam nas aldeias, com as pessoas sem instrução. Ou seja nas cidades, e nas melhores famílias a situação é bem diferente! Será?

Em Bamako, começam a soar os alarmes. As meninas, filhas dos mais reputados cidadãos, que lhes prouveram educação nos melhores colégios e acesso a tanto, que muitos outros nem sonham, estão a usar um estratagema. Como são modernas e tem possibilidades de sair à noite, usam esses privilégios para encontrar cidadãos, muitas vezes com idade de ser seus avôs, aproveitam para engravidar deles, de modo a casarem com eles e terem acesso ao último grito da moda, casa, carro, telemóvel, conta bancária e um marido bem na vida e acima de tudo com outras esposas e uma vida bastante ocupada, logo deixando-lhes bastante tempo livre.

Quem disse que basta mudar alguma coisa para tudo mudar? Eu diria que basta mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, a diferença é que as meninas das aldeias, casam sem saber o que poderia ser diferente na sua vida e as das cidades, casam porque sabem o que a sua vida tem de diferente.

Pensamento estranho para a semana de Natal? Será mas a balança só fica completa com todo o jogo de pesos, eu estou a colocar os pesos na balança, qualquer dia ainda dou por mim a perceber um pouco do que se está a passar à minha volta.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Natalidades

Quando se aproxima a quadra tão ansiada por tantos s(i)ento-me a (di)escorrer banalidades e outros pensares. Pela primeira vez vou natalizar africanamente. Vou imaginar que está frio. Vou decorar uma bananeira. Este período é seguramente o mais agradável para estar no Mali. As noites finalmente refrescam, deixando as almas repousar das quenturas diárias. O tempo seco, calmo, sem tempestades no horizonte, está realmente agradável. Um domingo tranquilo à beira da piscina. Horas a passar mansamente, como se subitamente estivéssemos a habitar uma fotografia. A mente a vaguear. A juntar ao quadro escuto “Fur Elise”.

Dou pelos meus dedos a tocar no teclado como se um piano fora. As palavras brotam qual peça de música. O ritmo varia desde um lento quase parado a um frenético quase orgásmico.

É com uma buganvília rosada a fitar-me e uma ninhada de patos a saborear os raios de luz matinais, que me imagino a teorizar sobre as diferenças entre dois mundos tão diferentes e tão longínquos e no entanto tão iguais e tão próximos.

Uma das grandes questões em discussão na Europa é a natalidade. Por aqui também. Os motivos é que não são exatamente coincidentes. Se os europeus temem a extinção e a incapacidade de cuidar dos seus mais velhos, os africanos tem boas razões para temer a explosão demográfica com a consequente míngua de tapas para as bocas glutonas dos mais novos. Tão próximos do abismo. Uns pela implosão outros pela explosão. Num mundo perfeito (?) estaríamos a falar de plosão. Nem im nem ex. Equilíbrios tão precários que talvez só literariamente existam. Porque o importante é o caminho. Só caminhando se vai.

É ao som de “One of these days” dos Pink Floyd que observo a apanha de um enorme cacho de bananas. Mostrando que mesmo o mais idílico dos quadros se move. Nada é eterno, tudo é eterno. A batida monocórdica permite o solo da guitarra e os acordes do piano. Para que se possa saborear o caminho há que parar e olhar em volta. São as pausas que nos fazem mover. São os silêncios que nos fazem escutar.

O desemprego aqui é espantoso. Embora ao sair para a obra veja mais de duzentas pessoas, a quem repetimos diariamente que não necessitam de ali estar, basta entregar currículos e contactos, que chamaremos os que necessitarmos, quando necessitarmos, eles não arredam pé. Agarrados a uma esperança efémera de que afinal pode ser possível…

Os silêncios permitem-nos escutar chilreios variegados. A luta pela vida é incessante, batalhas acontecem a todo o instante. Os lagartos andam por aqui como se estivéssemos ausentes, deglutindo esperneantes insectos.

O sol alteou mudando o verde das árvores, mostrando matizes ausentes há ,minutos. Uma brisa aromatiza narizes.

O Natal tão perto e tão longe. Prioridades que parecem estranhas. Banalidades. Natalidades.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cinquentenário

 

Neste ano de 2010 comemora-se por toda esta região o cinquentenário das independências. De facto 1960 foi o ano em que por toda a África se multiplicaram as novas nações. A Europa lambia as suas feridas saídas da segunda guerra e concedeu a autodeterminação aos povos que ainda dela dependiam. Que se pode dizer deste meio século? A Europa conheceu um desenvolvimento sem precedentes a todos os níveis, beneficiou de um período de paz duradouro. O nível de riqueza democratizou-se, estando hoje disponível um conjunto de bens materiais, acessível a tantos como nunca na história. As conquistas sociais multiplicaram-se. O bem estar social parecia ser uma via sem retorno. As populações urbanizaram-se, a ponto de hoje por hoje o conhecimento da natureza ser algo distante para tantos de nós. E África? Tornou-se independente. De facto!? A muitos níveis as condições de vida por aqui regrediram. Sendo perfeitamente natural encontrar povoações, sem estradas de acesso, sem energia, sem água potável, sem acesso a cuidados médicos, sem empregos…

Talvez este seja um caminho que tenha que ser percorrido. Talvez haja saída, para esta gente, que tem tanto direito como todos os outros a usufruir deste nosso planeta.

Quanto a mim, a mudança de mentalidades apenas ocorrerá após um caminho árduo mas necessário, que implica várias fases. Construção de acessos, construção de escolas, centros de saúde, seguidos de oferta de empregos. Sem isto não estará para breve o Términus do túnel em que toda esta região se encontra.

Será então que se justifica festejar este cinquentenário? Se os indicadores económicos forem determinantes, talvez não. Se pensarmos que um caminho se faz caminhando e que toda a escada começa a ser escalada pelo primeiro degrau, talvez sim. Erros (graves) foram cometidos, mas quem os não cometeu? Só se cresce depois de ter responsabilidades.

domingo, 21 de novembro de 2010

Tombuctu II

 

Para terminar a estada na cidade mítica uma deslocação ao porto de Kouriomé, ancoradouro que serve Tombuctu, o rio nesta zona apresenta uma largura tal que a margem sul apenas é adivinhada. O “BAC” transporta um camião para a outra banda. É a partir de Kouriomé que podemos partir para uma visita aos hipopótamos. Terá que ficar para outro dia.

De volta a Tombuctu, o comandante Sangaré sugere uma visita ao “Institut dês Hautes Études et de Recherches Islamiques Ahmed Baba de Tombouctou”. Entrámos chamam-nos a atenção para o adiantado da hora. Somos recebidos pelo director o Dr. Djibril Doucoure, as apresentações da praxe, sem grande entusiasmo. O Dr. Doucoure faz menção que pertence aos descendentes do Império do Ghana, anterior ao do Mali e ao próprio Islão, por estas paragens. Ao escutar isso atirei-lhe, “então é Sarakolé, primeiro sorriso, é Soninké!, Largo sorriso, “Ha Kembiré Waga”, um salto na cadeira e um discurso em soninké, ao qual só respondia com acenos de cabeça e sorrisos. O Dr. Doucoure comenta para o comandante, “Isto é fantástico, ele (eu) conhece os soninké e a própria língua”, claro que não me desmanchei e a partir deste momento as horas passaram para segundo plano. Quando referi que era português, disse-me logo que os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao império do Mali e agora estavam de volta. Tombuctu necessita desta estrada como de pão para a boca e nós somos muito bem-vindos. Boa.

Bouya Haidara, chefe bibliotecário, levou-nos então a ver os famosos manuscritos. O primeiro que me chamou a atenção foi um de Avicena, Tratado de Medicina em Verso, o mais famoso filósofo e médico do seu tempo séc. XI, à mil anos portanto, este é também o mais antigo da biblioteca, que conta com mais de trinta mil, já catalogados, não estando o total apurado pois muitos há ainda para catalogar.

Contou-nos de modo resumido a história de Tombuctu, mostrou-nos o acervo da biblioteca e a todas as questões respondeu sempre com inusitado prazer.

Fomos ainda ver a terceira mesquita histórica, já tinha visto a Dingarey ber, construída em 1325, pelo imperador Kankou Moussa, após o regresso da peregrinação a Meca, a Sankoré, do Séc XV, que tem como curiosidade ter um diâmetro igual ao da Kaaba em Meca e que ficou famosa por ter sido o santuário dos intelectuais e a casa mãe da universidade de Tombuctu, fomos então ver a Sidi Yéhia, de 1400, onde estão os restos mortais de Sidi Yéhia Al-Andalusi, famoso arquitecto Al-andaluz, reponsável por boa parte da cidade velha.

Tanta coisa vista em tão pouco tempo. Tanta coisa por descobrir.

sábado, 20 de novembro de 2010

Tombuctu

Estou em Tombuctu. Cidade história. Passado presente. Presente passado. Cidade dos tuaregues, hoje por hoje dos turistas. Estes locais prenhes de história e de estórias depois da descoberta dos turistas passam a dispor daqueles pequenos mimos que (não) dispensamos. Temos bons hotéis. Casas de artesanato. Guias para nos mostrar todos os cantos da cidade.

Tudo tem o seu reverso. As crianças crescem a ver turistas todos os dias e todos os dias os vêm a pagar por tudo e por nada, quando se vê um branco por estes lados é sinónimo de dinheiro a rebentar por todos os lados, todos querem o seu quinhão. Como estou só, e pareço árabe, safo-me.

Tombuctu tem no entanto coisas únicas. As casas são feitas com um tipo de tijolo que só há aqui. As portas são enormes, de madeira maciça, com grandes batentes metálicos e intrincados motivos também metálicos, que tornam cada porta numa peça única. Como apenas uma cidade antiga e importante pode ter, Tombuctu tem muitas bibliotecas. Antigas bibliotecas, que estão ao cuidado da mesma família há séculos. Aqui também há muitos historiadores. Centros culturais. Mesquitas construídas em terra com mais de sete séculos. Um mercado de artesãos cuidado e com artigos (ainda) genuínos.

O deserto está aqui à porta, melhor, adentro mesmo da cidade, a lembrar aos homens, que se esta é a capital do deserto, o deserto reserva-se o direito de reclamar o que é seu.

Quem possa pensar vir até aqui deve ter em conta, Tombuctu é longe de quase tudo. Os acessos (ainda) são maus. Podem sempre vir de avião, mas aí o choque será sempre diferente. Quem venha da Europa e aterre em Tombuctu, não terá feito a adaptação que quase mil quilómetros necessariamente fazem. Não terá visto a mudança da paisagem. As povoações que lutam por existir num ambiente agreste. As pessoas que se dedicam à sobrevivência diária, umas com os seus rebanhos, outras com a pesca, outras cultivando os campos. Atravessar tudo isso como fizemos ontem, quinhentos quilómetros em dez horas sem parar, mostra-nos uma Tombuctu com outra luz, com outro encanto. Beber aqui o chá com os tuaregues, não é somente beber o chá, é providenciar aos sentidos algo amargo, doce, quente, aromático, num ritual que nos faz sentir pertença e não sermos um objecto estranho que caiu do céu.

Em Janeiro próximo realiza-se aqui o festival do deserto. Um festival de música. Com músicos de todo o mundo. Até recentemente este festival realizava-se a cerca de setenta quilómetros de Tombuctu, deserto adentro. Numa zona de difícil acesso, sem água, comida ou sombra, curiosamente, talvez devido às circunstâncias particulares de segurança que vivemos, o festival realiza-se agora mesmo às portas da cidade e são os próprios habitantes que realçam o gosto perdido de antanho. Passou a ser um festival (quase) como os outros. Pode-se estar num confortável hotel, ir ao festival e regressar para um duche e uma noite reconfortante, para voltar no dia seguinte.

Tombuctu é a cidade dos 333 santos. Cidade que há já muitos séculos prega o islão. A primeira universidade subsaariana existiu aqui desde o século treze. No quarto do hotel onde estou, numa mesa-de-cabeceira tenho o sagrado Corão, em inglês e Árabe, na outra tenho a sagrada Bíblia, em Francês.

Há aqui bares com música ocidental e bebidas alcoólicas.

Tombuctu perdeu a aura mítica, com que atravessou muitos séculos. A sua fama de riquezas atraiu tantos a partir à sua descoberta e tão poucos viram recompensada a sua empresa… Talvez o seu futuro esteja no seu isolamento, mas também nos seus acessos. Nos seus tesouros, mas também nos seus turistas. Na sua história certamente, mas também na sua capacidade de inovar. Nos seus habitantes, mas também nos estrangeiros que aqui queiram investir, como o novo hotel Líbio, prestes a abrir, que para além do aspecto magnífico, tem acesso a uma praia banhada por água trazida por um canal desde o vizinho rio Níger…

Com todas as suas contradições, se vale a pena a viajem? Certamente.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Tabaski

 

O Aid El Kebir, significa literalmente a grande festa, é a festa mais importante do islão.

Aqui no Mali, bem como no Senegal ou Mauritânia é apelidado de Tabaski.

Segundo a história a festa Aid El Kebir comemora a subserviência de Ibrahim (Abraão) a Deus, que lhe ordenou o sacrifício do seu filho Ismael. A não hesitação de Abraão em sacrificar o seu filho Ismael para mostrar a sua submissão a Deus é para os muçulmanos o modelo do crente, sendo assim o primeiro muçulmano e o mensageiro de Deus. A mensagem do profeta Maomé regressa às tradições de Abraão e é por isso que os muçulmanos celebram o Aid El Kebir.

Este pequeno resumo de uma passagem do Velho Testamento representa então a maior celebração anual para os muçulmanos, nesta data termina também o Hadj, a peregrinação anual a Meca.

É então dia de Tabaski hoje aqui no Mali. Dia de grande fervor religioso. Para nós é apenas uma curiosidade, meio estranha, tanto como o dia de Natal para as pessoas daqui.

Na prática a influência deste dia na nossa estadia é um feriado, aproveitado para o lazer e o convívio.

Amanhã vou a Léré. Vou fazer todo o traçado da nossa estrada. A partir do hotel ir e vir representa perto de 400 km, vamos ver se dá para ir e voltar no mesmo dia…

domingo, 14 de novembro de 2010

Aniversário

Uma década.

Completada.

Uma vida, só iniciada.

Duma flor, só uma pétala.



Dez anos, tanta coisa para contar.

Tantas voltas a vida deu.

Para mim és só meu.

Uma vida a despontar.



Estou longe, muito longe…

Quem dera aí estar,

Poder te abraçar



Estou longe, muito longe…

Em África, nesta imensidão

Mas sei que estás, junto ao meu coração!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

S. Martinho

Tão longe que está, o S. Martinho pois claro. De frio nem novas nem mandadas. Por aqui ainda no período pré-stress, que antecede o início “a sério” de cada obra. O assunto primevo que nos une continua a ser gastronómico. Como encaixar um grupo de brasileiros e portugueses numa cozinha francesa, feita por um “chef” maliano? Os mais velhos nestas artes de trota-mundos vão aportando a água ao moinho. Aqui o Carlão tomou em mãos a árdua tarefa de mostrar aos franceses que em matéria bucal, se gostos não se discutem, pelo menos modificam-se e educam-se. Temos então uma cozinha em lenta adaptação ao famoso churrasco brasileiro. Onde até ao momento a tarefa tropeçou foi na aquisição do famoso feijão, algo distante destas paragens. A minha horta terá de esperar pela conclusão do estaleiro, pois por enquanto não há “condição”.


Os mosquitos continuam sem dar tréguas, a esta hora tenho mais furos que rede de pesca. O jardim do hotel é varrido todos os dias, pois as enormes árvores que compõem todo o complexo largam mais folhas que impostos os portugueses irão entregar ao “Grande Timoneiro” no próximo ano… A verdura e a relva são regadas todos os dias. É bonito ver como um pouco de ordem continua a fazer diferença neste mundo, conseguindo tornar aprazível um local que parece ter caído de outro planeta, tal a diferença para tudo o que nos rodeia…

Quem vem aqui caçar, tem garantida a possibilidade, assim queira, de caçar todos os dias, de manhã à noite de Novembro a Abril. Tem pisteiros, para achar e levantar a caça. E tem um cozinheiro empenhado em transformar o resultado desse esforço em iguarias de fazer crescer a água na boca.

Os Nossos anfitriões, o Joel e a Elizabeth, fazem tudo para que nos sintamos em casa. Até hoje o Mali tem sido simpático connosco.

domingo, 7 de novembro de 2010

Churrasco

Fizemos hoje o nosso primeiro churrasco maliano. Decidimos que era hora de começar a criar espírito de grupo, nada melhor que um belo churrasco. Comprámos o carvão. Depois para alguns menos experientes o simples acto de comprar uma pouco de carne num “talho” daqui é algo inolvidável. O pessoal só diz que a ASAE está longe. De facto não está nos hábitos portugueses comprar carne num balcão à beira da estrada de terra batida, com cobertura de moscas e pó. Só vos digo que estava divinal. Esta semana começámos os trabalhos de preparação do estaleiro. Os contentores devem começar a chegar no próximo domingo. Já temos 20 km de projecto aprovado. A água não deve ser um problema, o que atendendo à nossa localização não deixa de ser muito positivo.


A deslocação a Nampala foi proveitosa porquanto estive com os topógrafos que estão a fazer o levantamento da obra, conheci a estrada até perto da metade. Apercebi-me melhor do que nos espera. A viagem até foi engraçada, pois os militares que me acompanharam caçaram um grande lagarto, um varano, para o almoço, safei-me porque o Idir, responsável do projecto me ofereceu manjar, caçaram o dito com um pau. Iam mais felizes que crianças com rebuçados.

A temperatura baixou um pouco de noite, já é possível dormir sem ar condicionado. Com um pouco de sorte os mosquitos também irão dar uma volta, pois começa a ser difícil viver com tanta comichão.

Comprei um telemóvel que é uma cópia genuína de um Nokia topo de gama, que isso de cópias clandestinas não é comigo… Este tem site na internet e tudo. Explica lá bem o que é uma cópia genuína, para quem tenha dúvidas.

O que tem de bom ir para um país novo é ficar a conhecer algo sobre o que se passa aí, que nunca nos tinha passado pela cabeça. Por exemplo, os franceses colonizaram quase todo o sahara. Ao contrário do que os portugueses fizeram no Brasil dividiram esta região em múltiplos países. Os tuaregues ficaram divididos em seis países, sendo minoritários em todos eles. Isso originou pelas regras democráticas (?) uma subordinação a outros povos. Como são um povo livre (leia-se nómada) isso gera desconfiança nos gregários. Ou seja passaram de habitantes livres e senhores de um território imenso, quase semelhante à Europa, a desalojados sem casa e cuja causa esbarra nos petróleos desejados por tantos. E por tal desejo, as mais antigas democracias “esquecem-se” da história. Como estes eventos são ainda historicamente recentes a poeira ainda não teve tempo de assentar e as fronteiras são linhas traçadas a esquadro num gabinete europeu. Prevejo que ainda vamos ouvir falar de qualquer guerra por um punhado de areia, que nós europeus civilizados não compreenderemos.

Por falar em guerras, está em desenvolvimento um aumento grande da área de regadio onde estamos. Para arroz. Os pastores que vem do norte em busca de água e pastos para os seus rebanhos imensos não irão achar muita piada. Os pescadores que vivem na região do delta também não irão ver os seus rendimentos aumentar. Mas o aumento incessante da população obriga a reclamar cada vez mais meios para produzir alimentos. Aqui em zonas onde o equilíbrio é precário dá para se aperceber melhor do risco que (todos) corremos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

S. Martinho

Agora que Outubro já lá vai e entrámos definitivamente no mês do S. Martinho, por aqui abriu a caça no primeiro do mês. Novembro deveria ser um mês “algo” fresco, digo deveria, porque não está nada a ser, a temperatura só baixa ligeiramente dos trintas noite dentro. Não estou propriamente a queixar-me da temperatura, principalmente agora que por aí as coisas arrefeceram bastante, o problema, são os insectos. O meu corpo está que parece do Benfica, de tão vermelho. As picadas destes pequenos monstrinhos sucedem-se, dia após dia. Picam-me por cima da roupa, na rua, no quarto, quando vou à casa de banho… Então a minha esperança é que por alturas do S. Martinho, já que vinho provar não vou, pelo menos que o ar aqui mude um pouco e leve estes terroristas até à próxima estação das chuvas.


Hoje definimos a nova localização do nosso estaleiro, amanhã vou marcar os limites e se tudo correr normalmente, irei até Nampala, encontrar-me com os topógrafos que estão a fazer o levantamento do terreno para a execução do projecto. Nampala marca uma fronteira na insegurança. Já fica na considerada zona vermelha, foi alvo de um ataque dos rebeldes à dois anos, é também uma localidade praticamente na fronteira com a Mauritânia. Marca também o fim da região de Ségou, a partir daqui seguem-se terras de Tombuctu. A equipa de projectistas e topógrafos é argelina.

A cozinha continua digna de um hotel em qualquer parte do mundo. O que me faz sorrir. Se alguém me dissesse que eu vinha para uma zona remota do Mali e que a cozinha que nos fornece a paparoca era “Haute-cuisine française” eu responderia que tudo é possível, mas muito pouco provável. Ainda bem que as probabilidades existem. Meu rico 0.1%! De referir que em duas semanas de estadia e com três pratos por refeição, ainda não houve repetições.

Ontem conheci três israelitas. Dois romenos. Três norte-americanos. E outros cuja origem me não foi revelada. Até parece que estou numa região cosmopolita!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Outonidades

A primeira semana no Hotel em Kogoni já passou.


Não sei se o que se vai seguir representa um conjunto de disparates ou se ainda consigo construir linhas de pensamento. Vamos ver.

Num espaço impossível de stressar alguém, de tão calmo, verde luxuriante de árvores frondosas, onde, apurámos esta semana, o antigo presidente do Mali, Moussa Traoré, passava as suas férias, ele que também era um apaixonado pela caça, ouvimos reclamações da comida, nestes 7 dias nunca comemos nada repetido e cada refeição é constituída por entrada, prato e sobremesa.

Vemos pessoas a stressar por não terem muita coisa para fazer. Será possível que tenhamos os sentidos tão embotados que não se possa apreciar os campos de arroz, em todas as fases de desenvolvimento, com extensões até onde a vista alcança. Que não se escutem os mais de vinte tipos de grasnidos vindos de todo o lado a qualquer hora, especialmente de noite fechada, efectuados por aves de todas as cores e tamanhos. Que os nossos olhos se não encantem com lagartos de matizes esverdeadas, azuis, amarelos, vermelhos, simples ou cruzados, em busca incessante de insectos. Que nos passe despercebida a obra de engenharia levada a cabo há largas décadas pelos franceses, que possibilitou aquando da descolonização, que esta região produzisse arroz suficiente para alimentar o Mali e os países limítrofes, embora hoje não chegue para as necessidades internas deste grande país.

Há muitas coisas que não enxergamos porque olhamos sem ver.

Porque ouvimos sem escutar.

Porque tocamos sem sentir.

Estamos tão formatados às nossas cidades que saímos delas apenas para lamentar a nossa falta de sorte.

Sorte danada.

Sentidos embotados.

Aqui o ar tem textura. A água rebenta de tanto peixe. O mais pobre fica feliz porque lhe respondemos ao cumprimento. O Silêncio tropeça em chilreios. O equilíbrio de tão ténue entre o meio e o homem tem tanto de épico como de bíblico. O que tudo dá tudo tira. Aqui não há meio-termo, ou se ama desesperadamente como se o amanhã nunca chegue ou se desespera furiosamente porque não há fumo, carros, barulho, confusão.

Não se pode ficar indiferente num local assim, é uma questão de tudo ou nada.

Por questões de segurança temos escolta militar. Uns preferem destacar a insegurança de tal lugar. Que tanta segurança só pode ser por desgraça iminente. Prefiro pensar que não me pode desgraça alguma atingir quando gente tão qualificada está sempre a postos para se arriscar por mim. Que se ficar atascado na areia, uns vinte tipos na força da idade estão lá para que eu possa seguir. Que é impossível perder-me nestes matos com tantos guias, que policias menos ortodoxos me tentem extorquir algo, quando altas patentes me acompanham.

Nestes tempos difíceis, em Portugal como em todo o mundo ocidental, prefiro ver o copo meio cheio e apreciar cada golo que a vida me proporciona.

Os africanos são muito fatalistas, aceitam o que a vida lhes proporciona. Os europeus são muito contestatários, reclamam por tudo e por nada, muitas vezes sem razão.

Creio que uns têm que aprender com os outros e vice-versa.

Pela minha parte vou tentando compreender. A cada resposta seguem-se dez perguntas. Ainda tenho muito que perguntar.

A jornada ainda vai no começo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Hotel Mali Evasion - Kogoni

Após quatro dias de boa vida em Bamako, chegou a aguardada deslocação para o local onde iremos passar dois anos. A viagem correu bem, os cerca de 400 km foram percorridos em seis horas. Podemos dividir a viagem em várias fases, os primeiros 30 km foram para sair de Bamako, a cidade é enorme. Desta vez deu para ver o movimento caótico do trânsito principalmente constituído por motorizadas chinesas, aqui ninguém dá a vez a ninguém e nos cruzamentos pode ser necessário algum sangue frio. Depois a paisagem mudou para um terreno ondulado com algumas colinas, afastámo-nos do Rio Níger. Pagámos a primeira portagem, não se trata de nenhuma auto-estrada nem SCUT, apenas uma estrada igual a tantas por aqui, com a diferença que tem portagem. Logo após entrámos numa zona de floresta protegida. Aqui durante umas dezenas de quilómetros vemos árvores até onde a vista alcança, muitas de grande porte. Depois entramos na região de Ségou. É uma região de pouca actividade agrícola. Ségou tem uma variante com duas vias em cada sentido com uma extensão de quatro ou cinco quilómetros, não entrámos na cidade. Uns dez quilómetros depois cruzámos de novo o Níger, desta vez para norte, numa ponte açude que representa o inicio do Canal do Sahel. Este com uma extensão de perto de 200 km, permite a cultura de milhares de hectares de arroz. A nossa estrada começa bem no final destes campos imensos. Até lá só vemos água e arroz. Como o clima aqui é quente todo o ano podemos ver arroz em todas as fases de crescimento, desde a sementeira à colheita. Em Niono, principal povoação do Canal, termina o asfalto e esperam-nos uns simpáticos militares, que nos irão acompanhar por todo o lado, Não por ter havido problemas por aqui, mas para que não os haja. As povoações seguem-se umas às outras, de terra batida e junto ao canal. Por aqui ou se cultiva arroz ou se parte em busca de sorte diferente. Uma outra companhia recupera estes quilómetros de estrada, da estrada de Tombuctu. Pensei algumas vezes, por que carga de água haveria um hotel por aqui. Que hotel seria? Num misto de curiosidade e apreensão chegámos. As primeiras impressões são francamente positivas. Um espaço arborizado. Piscina envolta por um relvado. Flores. Um bar. A fome era muita pois não comíamos desde o pequeno-almoço. Umas entradas frias. Caprichadas. Um bife tenro e suculento. Uma cerveja Castel gelada no bar. As sombras imensas refrescando um pouco a canícula. Grasnidos desconhecidos, vindos de pássaros estranhos. Um hotel procurado por caçadores. No que resta de uma propriedade colonial. Quando as casas se faziam para durar. Muitos patos mudos, as mães cuidando de suas ninhadas. Gente calma. Um ambiente de final de verão. Sitio perfeito para quem queira carregar as baterias para mais um ano de vida desgastante na grande cidade. Estamos a uma vintena de quilómetros do começo da nossa obra, onde termina o Canal do Sahel, em Goma Coura. Estamos no reino de sua majestade o arroz. Todos os canais que abastecem de água estes campos estão prenhes de peixe. Para os miúdos é uma festa. Banhoca todo dia e peixe fresco à distância de um pouco de fio e um anzol. Esta será a nossa casa até termos a nossa base terminada. Resta-nos esperar pela chegada dos equipamentos. E começar a trabalhar. Enquanto isso à boa maneira africana esperamos pelo destino…

domingo, 17 de outubro de 2010

Chegada a Bamako

O primeiro impacto à saída do avião continua brutal. Relança os sentidos numa busca interminável. Lembra aos esquecidos o que perderam durante a ausência.


O aeroporto é pequeno, longe das dimensões brutais do Charles de Gaule.

A cidade é enorme. Avenidas de vintena de quilómetros, com duas vias em cada sentido. Sinais a relembrar a festa do cinquentenário há um mês.

Cruzámos o Níger pela primeira vez. As avenidas despidas de carros. Estranho. As capitais africanas habitualmente estão prenhas de trânsito.

É sábado. São 21 horas. Chegámos ao hotel. Parece bem. Para o jantar “ Capitaine à Provençal”, e Flag. Nem parece que passaram 10 meses. Os aromas permanecem na memória.

A hivernage está quase terminada.

Nova etapa que começa.

Domingo. O ar tórrido apenas permite um passeio pelas redondezas. Ministérios. Embaixadas. Hortas. Muitas hortas. Uma Castel e outra. Almoço de “Carpe braisée”. Não há mais Flag nem Castel. Vai a “33”. Têm reforçar o stock.

Apenas quatro de nós. Apareceram os outros quatro que já cá estavam. Todos brasileiros. Hoje chegam mais seis. Isto começa a compor-se.

Daqui ao local onde iremos trabalhar é mais ou menos como atravessar Portugal de norte a sul.

Como vai ser?

É isso que vamos saber!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Piroga no Níger

A estrada de Tombuctu

O destino volta a bater à porta. Embora o nosso planeta, por vezes pareça pequeno demais, para as crueldades a que o submetemos, por enquanto ainda é vasto o suficiente, para o número daqueles que poderão ter uma visão global, ser bastante restrito. Estive em casa o tempo de uma gestação. Volto a aventurar-me na imensidão africana. Com tanta África possível, volto para o sahel. Mudo no entanto de país, da Mauritânia para o Mali. Mudo-me da beira Rio Senegal, para a beira Rio Níger. Dois rios que nascem nas mesmas montanhas, seguem por momentos na mesma direcção e subitamente continuam por caminhos opostos. Apostados em manter a vida em locais, hoje inóspitos, onde apenas a sua existência permite estancar o avanço das areias do grande deserto do Sahara.
O Rio Níger é o terceiro maior de África, tem mais de 4100 km. Foram os Portugueses João de Santarém e Pedro Escobar que em 1471 descobriram a sua foz, na actual Nigéria. Durante quatro séculos a localização da sua nascente foi um completo mistério. Bastantes exploradores perderam a vida a tentar localizá-la.
No séc. XIX finalmente o curso deste importante rio foi testemunhado, da nascente nas montanhas Fouta Djallon, na fronteira da Guiné-Conacry com a Serra Leoa até à foz na Nigéria, passando pelo Mali, o Níger e o Benim.
Uma das zonas mais ricas em vida deste enorme rio é o Delta Interior do Níger, zona com uma extensão semelhante a Portugal, que todos os anos é inundada pelo Níger durante a época das chuvas, de Junho a Setembro. Esta zona poderia ser como o delta do Okavango no Botswana, após deixar Angola, precipita-se nas areias do Calaári e desaparece. Aqui no Mali, no entanto, o Níger aporta uma quantidade imensa de água, que lhe permite espraiar-se por centenas de quilómetros e seguir viagem até ao golfo da Guiné, distante cerca de 3000 km...
É então aqui, às portas do Sahara, cerca de Tombuctu, a capital do deserto, que vamos facilitar o acesso a uma cidade, outrora capital de impérios riquíssimos, conhecida hoje pelos seus festivais de música, que atraem forasteiros de todo o mundo.
Tombuctu apenas perdeu a sua importância, quando os portugueses passaram a dominar o atlântico e a realizar o comércio entre o sul e o norte através das rotas marítimas, tornando as rotas do deserto obsoletas. Nestes quatro séculos contudo manteve-se como porta de entrada para o grande oceano de areia que é o Sahara.
O Mali sendo um país sem mar, produz anualmente mais de 150000 toneladas de peixe, fruto da prodigalidade das águas quentes do Níger.
Neste enorme país, rico em tradições e habitado por povos variados, falam-se quase tantas línguas como em toda a Europa. Pratica-se a agricultura desde à 9000 anos, numa região outrora verde e que as alterações climáticas ocorridas à 6000 transformaram no grande deserto.
É então aqui, neste mar de água às portas de deserto, que iremos mudar a vida de muita gente e que muita gente irá mudar a nossa...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Três Anos

18 de Agosto de 2007
Sábado. 6:00 am – Tocou o despertador. Acordei para um dia completamente inesperado apenas duas semanas antes. O dia da minha viagem para a Mauritânia. Foi o dia em que mais me custou levantar e despachar em muitos anos. A Guida fez-me dar um beijo ao Xavier, coitado estava de tal modo a dormir que não deu qualquer sinal, quando o agarrei para o beijar. A Inês, como sempre aparenta maior autocontrolo e deseja-me boa viagem.
18 de Agosto de 2010
Quarta-feira. À três anos atrás iniciava deste modo a minha campanha por terras mauritanas. Depois de ter regressado à casa mãe no inicio deste ano, sem grandes expectativas, é certo, tentamos não ser engolidos por esse vórtice de desânimo e desespero que assola este canto. Contrariamente ao sentimento geral, experimento algum optimismo moderado. Creio que estão para chegar boas oportunidades, embora a situação não chegue ao anunciado, noutros tempos, oásis.
É tempo de recordar, mas também tempo de agradecer. Agradecer aos companheiros de caminhada com quem tive o privilégio de partilhar algumas experiências. Algum pedaço de caminho.
É tempo de preparar os próximos passos. Os próximos caminhos.
E amanhã é outro dia…

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Há pessoas que são eternas

Ontem completou-se a primeira órbita deste planeta desde que recebi uma noticia qual murro no estômago, cruel, violenta. Um amigo partiu. Tantas coisas aconteceram. Tantas continuam iguais. Lá onde o Rodrigo anda, estará certamente rodeado de crianças a quem distribuirá sorrisos e rebuçados.

sábado, 19 de junho de 2010

E esta hem…

O mundo dá muitas voltas…
Quando rebentou esta (bem)dita crise em Agosto de 2008, após meses de subidas loucas nos preços de todas as matérias primas, e os bancos começaram a cair uns atrás dos outros (apenas o endividamento gigantesco dos estados evitou a falência de muitos deles), e começaram a ser noticia Maddoff’s e quejandos, todos os liberais deste 3º Calhau a Contar do Sol, pediram aos anjinhos que os governantes fossem intervenientes activos no mercado. Como os pedidos foram angélicamente respondidos, logo começou o rol de críticas aos salvadores de ontem. Hoje por hoje todos voltaram a ser liberais. Quanto menos estado melhor estado. O BCE depois de ter andado a assobiar para o ar ao longo destes últimos anos, percebendo o que pode estar por aí a chegar, ordenou a todos os bancos da zona euro que publicassem a taxa de esforço – quantos dias podem continuar abertos sem receber novos créditos – para se saber exactamente qual a situação do sistema financeiro na Europa.
E é aqui que eu me vou rir, quando virmos, escarrapachado, que bancos tidos como autênticas rochas de tão sólidos, publicarem que conseguem estar uma ou vá lá duas semanas sem acorrerem a créditos alheios. Quero ver esses liberais de pacotilha, que são óptimos a conceder receitas nas desgraças alheias, a recomeçar campanhas bem urdidas na sempre solícita imprensa, aludindo à necessidade de novos avales estatais para salvar a economia e a empresas e as pessoas. Claro que quando (obrigaram) as empresas a aceitar créditos para negócios (in)viáveis, para cumprir rácios, ainda à poucos anos atrás, e criaram necessidades que nem o mais imaginativo conseguiria descortinar, estavam apenas a contribuir para a riqueza nacional. Agora descobriram, com grande consternação, que de repente toda a Europa ocidental se endividou desmesuradamente, numa avidez consumista sem paralelo na história. Há que despedir, reduzir, achincalhar todo um povo que foi ingenuamente na cantiga do bandido.
O mundo dá muitas voltas…
Quando a Europa alegremente entregou a quase totalidade dos seus meios de produção à china, que tem excedentes monetários incríveis e financia os estados e bancos europeus, para que estes lhe possam comprar mais bens. Quando temos quase metade dos nossos jovens sem emprego e sem perspectivas de o virem a ter. Quando pedimos dinheiro emprestado para pagar subsídios de desemprego, para os desempregados terem dinheiro para comprar artigos chineses…
O mundo dá muitas voltas…

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Razão

Nesta vida de indiferenças
De partilhas tensas
Não interessa o que pensas
Nem as tuas Olivenças

Nesta vida de guerras
De íngremes serras
Não interessa o que berras
Nem o que ferras

Apenas aquilo que fazes
Sói quedar enregistado

Apenas aquilo que trazes
É passível de ser doado

Apenas o sentimento
Pode dar alento
A um triste coração
Desalinhado com a razão!

domingo, 30 de maio de 2010

Telefone

Recebi hoje uma chamada de Bakel. Foi o Malik que se lembrou de mim. Já antes me chamaram, o Sow, o Mamouni, o Diarra, o Djaló, o Sy, o Heiba, o Cheikh…
Não creio que seja assim tão bom, para tantos de mim se lembrarem, também não serei tão mau, que ninguém se lembrasse…
Talvez tenha deixado uma parte do meu coração, naquela terra inóspita, torrada pelo sol, árida…
Talvez tenha acrescentado algo à vivência de gentes tão diferentes e no entanto tão iguais…
Se aprendi alguma coisa com a minha estadia por terras mauritanas, foi que independentemente do que nos divide, o que nos une é incomensuravelmente mais, as pessoas que por lá encontrei são na sua maioria crentes, querem o melhor para os seus filhos, aspiram a uma vida melhor…
Percebi também que muitos milhões de seres humanos não têm o dia de amanhã garantido. A vida é uma luta árdua e diária. Hoje como ontem…
Vi com os meus olhos a sorte que os meus filhos tiveram por ter nascido neste rectângulo…
Entendi que o tipo de desenvolvimento prosseguido pelo mundo ocidental não é passível de ser democratizado, ou seja nem todos os habitantes do planeta se poderão dar ao luxo de viver como nós. Consumimos demasiado. A nossa pegada ecológica é demasiado grande…
Se temos vivido como rapinas, teremos que reorientar a educação que damos aos nossos e explicar-lhes que as rapinas nunca poderão ser mais que uma pequena percentagem do total. A época do vale-tudo está a acabar…
Tanto se tem falado sobre qual o novo paradigma para Portugal. Pouco se tem parado para escutar. Todos falam, ninguém ouve. Ninguém quer perder nada. Todos perderão bastante…

domingo, 16 de maio de 2010

Planeta X


Já lá vão cinco meses desde o meu regresso da Mauritânia. Foram cinco meses de aclimatação à “vida real”. O tempo voltou a ser um bem escasso. Aqui as horas passam mais rápido, os dias voam. Quando damos por isso quase meio ano passou. O que fizemos? Trabalho, muito! Assistir a espectáculos, poucos para a necessidade. Voltar a acompanhar o dia-a-dia da família, nunca se recupera o tempo passado… Voltar a ouvir noticias em Português, isso quase me faz entrar em depressão. Será que neste país ninguém ainda percebeu que o problema não é o falhanço de Portugal, na sua tentativa de aproximação à Europa, mas sim o falhanço dessa mesma Europa num contexto global, sem muletas, leia-se colónias? O que falhou foi uma União económica, feita de egoísmos, qual manta de retalhos. O que falhou foi a qualidade dos políticos que nos tem governado. O que falhou foi um continente que insiste em viver isolado do resto do planeta. O que falhou foi uma consciência europeia global, com o abandono das colónias, a nova geração de europeus fechou-se, isolou-se, considerando que poderia viver dentro da sua concha como se a miséria alheia nunca nos pudesse afectar. Como se a Europa fosse um Titanic no meio do Oceano. Só que a história demonstra-nos avisadamente, que isolamento e egoísmo só podem dar maus resultados. A solução nunca será o alheamento das desgraças alheias, tal apenas poderá fortalecer ressentimentos e ampliar as consequências do choque intercultural.
Pouco tenho escrito, agora que o equilíbrio estará restabelecido é tempo de voltar a registar pensamentos, de voltar a soltar ideias no papel, quais pássaros ao vento e vê-los a ganhar altura e partir em todas as direcções, como raios de luz num dia de verão.
Uma das ideias mais radicais e controversas que me têm acompanhado desde que experimentei viver numa sociedade bastante religiosa, mas de “outra” religião, que me mostrou como é grande a nossa ignorância em relação aos nossos vizinhos e vice-versa. Onde experimentei a sensação de ver noções de pecado que para nós parecem coisas de ignorantes, mas onde as “nossas” preocupações não fazem sequer sentido. Fez-me imaginar e viajar por mundos ancestrais e tentar aceitar mais uns quantos conceitos “heréticos”, mas ao mesmo tempo saborosos e inquietantes. Reveladores e assustadores.
Então é assim…
Para os seguidores do islão, o que está escrito no livro sagrado, Alcorão, é a verdade absoluta. Enquanto para os cristãos o que está escrito no livro sagrado, Bíblia, foi escrito num determinado contexto e numa linguagem cifrada em que apenas os iniciados e estudiosos conseguiam dar sentido.
Dei por mim a experimentar a ideia, à laia islâmica, e se aquilo que está inscrito na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento fosse absolutamente verdade? Ipsis verbis! Mas para apimentar a coisa, poderíamos introduzir umas noções capazes de provocar excomunhões noutras eras.
“O planeta X está à beira de um colapso ambiental. Os seus habitantes são dos mais sábios da galáxia, pertencem ao reduzido número dos autorizados pelo Conselho Galáctico a jogar aos Deuses. A intervir no futuro dos planetas circundantes. A alterar o futuro. Esta autorização só foi concedida àqueles que davam garantias absolutas de melhorar a natureza. O Conselho não dava estas autorizações de ânimo leve. Apenas os que davam garantias através dos exemplos de eras passadas, conseguiam tal desiderato. Os falhanços experimentados por alguns dos mais talentosos, forçaram os governantes de X a não fazer uso da autorização senão após o quase completo desastre ambiental provocado por um gigantesco meteoro, que quase aniquilou X. A sua tecnologia impar à escala galáctica e invejada por todos os que dela ouviram falar iria finalmente ser utilizada numa tentativa desesperada de salvar a própria civilização de X.
Foi enviada uma equipa com os melhores, os mais promissores, os mais aptos, para explorarem um pequeno planeta, orbitando uma pequena estrela.
Anos de trabalho árduo deram frutos, o raro ouro, fundamental para recuperar o danificado ambiente de X, fluía. Os jovens exploradores passaram a exemplos no planeta natal. O sacrifício de alguns estava a dar resultados para o todo.
Então alguns desses jovens tiveram uma ideia que iria mudar definitivamente o curso da história do pequeno planeta.
Numa das regiões exploradas existia uma espécie autóctone similar aos habitantes de X, mas cujo estágio incipiente de desenvolvimento ainda não permitia, nem iria permitir nos milénios próximos, nenhuma interacção. O projecto da geneticista-chefe consistia em alterar geneticamente o código ADN destes seres prometedores embora atrasados, de forma a serem estes a efectuar o trabalho cada vez mais árduo da recolha do necessário ouro.
Após várias tentativas falhadas, conseguiram por fim aquilo que ansiavam, um ser trabalhador, submisso, que os adorava como deuses.
A morfologia destes novos indivíduos aproximada à dos habitantes de X, atractiva mesmo para alguns, deu origem a híbridos bastante superiores aos “fabricados”. Estes híbridos seriam alvo de honrarias e invejas por parte de alguns seres rancorosos com as suas origens.
Finalmente o equilíbrio em X foi atingido. O sacrifício dos jovens aprendizes de feiticeiros foi menosprezado pelos que ficaram em casa. Rapidamente pressionaram os dirigentes a abandonar o pequeno planeta, que tantos custos traziam.
Os poucos milhares de seres dessa novel espécie, espalhados por esse pequeno planeta, esqueceram a sua origem por tão pouco nobre. Tinham sido escolhidos, para trabalharem como escravos em minas de ouro. O ouro nunca mais perdeu o fascínio para esses seres. Em todos os grupos surgem líderes. Os líderes destes híbridos, em algumas épocas foram os mais fortes, mas os mais duradouros, os que deixaram bastantes seguidores, não eram especialmente fortes, antes usavam as novas armas herdadas. A capacidade de pensar. Utilizar o raciocínio abstracto para o bem de alguns, enquanto difundiam a ideia, que se tratava do bem de todos.
Desse modo gerações passadas, quando já se tratava de muitos milhões e o pequeno planeta estava à beira do colapso ambiental, como anteriormente X estivera, a esmagadora maioria desse povo, criado pelos senhores dos céus, como mão-de-obra e abandonado num estágio incipiente devido a tricas políticas, acreditava piamente ter sido a obra de um Deus Todo-poderoso. O único problema era que diferentes grupos ao longo dos tempos tinham criado diferentes representações desse Deus. Por essas representações muitas guerras se fizeram. Muitos equívocos, originaram conflitos.
Quando os habitantes de X voltaram ao pequeno planeta e viram o desastre iminente, originado pelas suas criações, estiveram tentados a colocar um ponto final em tal desvario. Mas relutantemente optaram por lhes dar uma moratória, a ver se seriam dignos de um dia poderem saber que no seu ADN estavam intercalados pedaços do mais fantástico ADN que esta região da galáxia alguma vez vira, a dos habitantes de X.
Esta possibilidade só foi outorgada aos habitantes do pequeno planeta depois da verificação que tais destruidores afinal conseguiam originar obras de arte de mérito, mesmo pelos padrões de X…

Tem os que passam

Tem os que passam, de Alice Ruiz "Tem os que passam e tudo se passa com passos já passados tem os que partem da pedra ao vidro deixam t...