quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Morro do Moco

Chegou o dia esperado. Era um domingo diferente. Embora a saída não fosse logo pela manhã, acordei cedo. Aproveitei para ler um pouco. Por volta das dez e trinta estava no local de partida. Já lá estavam alguns colegas. Pelas onze e pouco partimos para a expedição acordada.
Mais um dia de calor, iríamos fazer a viagem durante o período mais quente. A deslocação decorria em bom ritmo, pese serem cinco as viaturas. Depois de algum tempo deixámos de ver a Ranger que circulava atrás de nós. A cobertura de rede telemóvel ainda deixa muito a desejar. Estávamos numa zona sem cobertura. Parámos todos e esperámos. Algum tempo depois chegou a retardatária. Estava a aquecer. A vantagem num grupo como este é que é bastante ecléctico, logo foi identificado o problema, radiador. Como houveram desistências, lográmos transferir carga e ocupantes para as restantes viaturas. A Ranger avariada voltou à base, nós continuámos, ainda tínhamos mais de quatro horas de viagem à nossa espera.
A passagem pelo Waku Kungo foi uma surpresa. O antigo colonato da Cela, ainda surpreende pela positiva, comparando com o que conhecemos de Angola. Leva-nos a imaginar como foi e podia ter sido...
No Alto Hama deixámos a N120, para o Huambo e tornámos à direita pela N250 na direcção do Lobito. Chegados a Ussoque, abandonámos o asfalto e entrámos nos últimos dez quilómetros que demorariam uma hora inteirinha a ser percorridos, balançando tanto que mesmo no mar alto um barco pareceria mais simpático para estômagos fracos.
Finalmente as majestosas montanhas estavam frente aos nossos olhos, chegámos a Kanjonde estava a decorrer uma partida de futebol, tivemos que atravessar o “estádio” para entrar na aldeia, as crianças não quiseram mais saber de futebol, queriam ver os estranhos que lhes invadiam a vida.
  Veio o Soba, apresentámos-lhe os nossos cumprimentos. Escolheu-se o sítio para a base, no alto após a aldeia. Começámos a montar as tendas e logo veio a chuva e o vento e a noite. Tudo junto. Mais uma trovoada imensa. O frio começou a apertar, apanhando-nos de supetão. Logo a mim, que pensava que nunca iria necessitar de algo mais que uma T-shirt ou uma camisa. Foi complicado acender o carvão nestas condições. Mas para um churrasco, convidado que não pode faltar é o carvão. Fizemos uma cobertura improvisada com um plástico entre duas carrinhas. Os “pilares” representaram uma invenção, se a segurança visse...
Apareceu uma guitarra e rolaram canções. O vento, a trovoada e a chuva, não devem ter gostado pois intensificaram-se tanto que as trovas acabaram cedo. Uma das tendas tinha voado rumo ao infinito. A noite prometia. Só pelas 4 da manhã houve tréguas.
O despertar foi cedo, pelas 5 e meia. Pelas caras percebia-se que a noite não tinha sido muito bem dormida. Comer alguma coisa. Preparar as mochilas, água, sumos e algo para comer. Vieram os guias, o Domingos e o Celestino. Saímos pelas 7 horas. A chuva voltou. O frio não chegou a partir. A paisagem linda de morrer. Duas linhas de água não muito profundas, não fizeram mossa na equipa, o terreno continuava praticamente plano. Após cerca de dois quilómetros iniciámos uma descida íngreme, mais de cem metros, inclinação superior a cem por cento, lançaram o primeiro alerta, como seria no regresso? Após a subida ao Cume?
Um campo de milho e um riacho de águas límpidas a chamar para um banho, talvez mais tarde, que ainda friava bastante. Continuava com um polar, nunca tinha utilizado tal adereço por terras africanas. A subida começou brutal, sem aviso prévio. A margem esquerda do riacho continuava no mesmo registo em que terminara a direita.
Vimos umas pequeninas flores amarelas, a planta completa consistia em apenas quatro folhas, carnudas, abertas a proteger a pequena flor. Nunca tínhamos visto tal. Após uns 200 metros terminou o espectáculo. As tais flores desapareceram, elas que seriam umas boas centenas no caminho que acabáramos de percorrer. Algumas árvores raquíticas ponteavam a paisagem. Mais uns riachos, pequenos mas ruidosos, foram atravessados. O terreno continuava fácil. Virámos. Terminou o flanqueamento. O nosso desafio estava em frente. Iria começar a subida. Encosta arborizada, coisa rara por estas bandas. Não sei se as pequenas árvores são o que resta, ou se são a floresta típica desta zona.
A subida empinou, o terreno apresentava-se agora, rochoso. O arvoredo cedo acabou. Depois de uma curva, um belo vale verde apresentava-se aos nossos olhos. O Morro do Moco, finalmente à vista. Ui. Tão alto... O solo negro e fundo, o capim de folha larga. O guia disse-nos que traziam os bois até ali para pastar. Parou a chuva e logo despontou sol inclemente. Polar e chapéu fora. A roupa estava mais molhada que depois de lavar, junto suor e chuva.
As pernas continuavam soltas. Permanecia no grupo da frente, logo atrás do Domingos, que por estas horas já caminhava descalço, pois as suas Havaianas tinham desistido de ser calçadas...
Última etapa da subida. Começaram as dificuldades. O chão fundo não oferecia resistência ao peso e afundava um pouco, o suficiente para tornar uma subida difícil, num desafio quase intransponível. Comecei a descolar. Primeiro um, depois dois e finalmente três, passaram-me. As passadas começaram a ser intervaladas, após cada duas ou três, por paragens cada vez mais frequentes. A subida era agora feita em ziguezagues. Chegámos ao cimo. Ufa. O cume do Morro do Moco. O ponto mais alto de Angola. 2620 metros acima do nível do mar. A vista é linda. De cortar o fôlego. Desfrutamos todos os 360°. Tudo verde. O Huambo é lindo. O resto do pessoal ia chegando. A satisfação de terminar a subida era visível nos rostos cansados. As fotos da praxe, cada qual por si. Depois todos juntos. Foi aí que me apercebi da minha grande falha. Não levei a Portuguesa. Os brasileiros tinham a sua verde-amarela com a “Ordem e Progresso” e o Cruzeiro do Sul. Os angolanos a rubro-negra com a catana e a roda dentada, mostrando a tradição e o futuro, apenas eu, único português, fiquei sem bandeira. Imperdoável.
Chegou a faixa com os dizeres “Expedição ao Morro do Moco – Odebrecht – AH Cambambe – 11/11/2012”, fotos “oficiais” dos expedicionários que atingiram o objectivo.
Começou o regresso, mais sete quilómetros aguardavam por nós. Início rápido, quase em corrida, para vingar o chão que tantas dificuldades dera na ida. Sempre na linha da frente, sempre em passo rápido.
O grupo começou a abrir brechas, deixámos o guia numa zona onde podia haver dúvidas para os que nos seguiam. Chegámos rápido ao ponto mais baixo do trajecto, o riacho de águas límpidas e convidativas, apenas a 1700 metros, 900 metros abaixo do cume. Alguns seguiram para a base, para começar o almoço, eu rápido despi a roupa transpirada e entrei na água gélida, nunca me soube tão bem um banho gelado. As pernas que tinham começado a doer, agradeceram, os pés maltratados, agradeceram mais ainda. Faltava pouco.
Vestir e arrancar para a etapa final, fácil. Fácil? Só para quem está desatento. Logo no início alertei para a dificuldade desta zona íngreme. Foi nesta subida que experimentei as maiores dificuldades. A dor nas pernas voltou inclemente. Os dois quilómetros finais pareceram duas eternidades. Os dois Valinhos da ida, transformaram-se em canions profundos, a aldeia nunca mais aparecia. Os meus sonhos iam todos para uma Cuca gelada.
Finalmente Kanjonde. Nunca um aglomerado de casas de terra e telhados de colmo, me pareceu tão convidativo. As crianças, imensas, rodearam-nos, com olhos cheios de curiosidade e barrigas cheias de fome, ou olhos cheios de fome e barrigas cheias de curiosidade.
Fomos bebendo água, que terminara. E na ausência da Cuca, foram umas cinco Cristal, portuguesas. Mais umas picanhas grelhadas, muita fruta. Tudo arrumado, tendas e lixo, não ficou nada para trás.
Havíamos chegado há duas horas e ainda faltava gente. No horizonte duas trovoadas. A chuva regressou à aldeia. O sol baixava. O frio reclamava o seu lugar. Finalmente o grupo completo. Partida de regresso a Cambambe, seis horas de viagem.
Em Cambambe às dez da noite. Calor. Chuva nem vê-la. Frio? Ná...
Foi assim que comemorámos a independência de Angola, doridos mas vivos e com vontade de trabalhar neste país. Vontade de produzir muita energia eléctrica, para que as crianças de Kanjonde não continuem a ter a escuridão por companhia todas as noites.

Deixámos livros e lápis ao Soba, para que pudesse distribuir pelas crianças, que são quase duzentas numa aldeia de trezentas almas.

Tem os que passam

Tem os que passam, de Alice Ruiz "Tem os que passam e tudo se passa com passos já passados tem os que partem da pedra ao vidro deixam t...