domingo, 26 de fevereiro de 2012

Elites

Até ao seculo XII, Al-Usbuna era uma das cidades mais populosas e cosmopolitas da europa. Já tinha cerca de cem mil habitantes. O comércio, bastante desenvolvido, beneficiava duma localização geográfica ímpar e de um porto natural sem rival. A coabitação entre os três povos do livro – cristãos, judeus e muçulmanos, não sendo perfeita, permitia a liberdade de culto e de vida a todos eles. A nível cultural beneficiava da proximidade a Córdova e Sevilha, por esses tempos os guardiães da tradição greco-romana e muçulmana.

Com o episódio exemplar da tomada da cidade pelos cristãos ficou dado o mote para o futuro do recém-criado reino. Os cruzados em trânsito para Jerusalém obtiveram o direito de saquear a cidade e os seus habitantes. O nosso jovem-rei Afonso, o primeiro dos borgonhas a governar o nóvel reino, analfabeto e completamente subjugado aos interesses da igreja de Roma, só entraria na cidade após uma semana de saque por parte dos “nobres” cruzados.

Dinis, o sexto da linhagem a tomar conta dos destinos do “al-garb” europeu, foi no entanto o primeiro dentre estes a não precisar de assinar de cruz, porquanto era mestre na arte de manejar a pluma, que era assim que se escrevia nesses tempos. Claro ser culto motivou desentendimentos com os interesses da santa sé em terras lusas.

Foi necessário esperar mais um século para termos então outro rei que se distinguia dos pares pelas ideias e não apenas pela força bruta, o mestre de Avis, D. João, o primeiro. E este deve os ensinamentos que obteve, não à educação real, mas a ter sido preparado para dirigir a ordem de Avis e ter sido rei por mérito e não apenas por linhagem. Afortunadamente veio a casar com D. Filipa de Lencastre, uma inglesa que só aceitou desposar um “selvagem” de um país longínquo, trazendo na bagagem uma vasta biblioteca, tutores para os rebentos futuros e a garantia que poderia educar a descendência. Os filhos deste casal atingiram tal notoriedade e foram de tal modo influentes na vida lusa que beneficiaram de uma expressão só a eles reconhecida – Ínclita geração.

Chegados ao vigésimo século d.C., quais fidalgos falidos com ares de importância. Ao arrepio das correntes mais vanguardistas, mantínhamos 85% de analfabetos. Uma subserviência aos mais retrógrados pensamentos católicos. Uma inquisição só formalmente abolida, porquanto qualquer liberdade religiosa era fortemente reprimida.

A revolução republicana, se formalmente apoiada num desejo de livrar o país de elites decrépitas, descambou numa troca simples de governantes. Apenas em 1956 foi instituída a obrigatoriedade da escolaridade até ao quarto ano e apenas para os varões. Só em 60 as mulheres beneficiaram desta situação.

As nossas elites beneficiaram de monopólios durante séculos. Os tiques absolutistas ainda hoje se manifestam, governantes que não aceitam críticas, clérigos pouco dados ao diálogo e a assumir pecados cometidos ao serviço duma instituição que supostamente serviria para venerar a Deus, industriais viciados em trabalho escravo, gestores com a quarta classe, sem dinheiro para retribuir o esforço dos seus assalariados e com bolsos sem fundo para comprar políticos de pacotilha.

Deixámos de ter a ambição de mudar o mundo, para simplesmente querer ter um telemóvel de última geração. Isto aconteceu quando pela primeira vez na nossa história tivemos acesso, como um todo, a instrução. Quando a maioria dos nossos jovens termina o secundário. Quando temos uma quantidade de doutores, engenheiros e arquitetos inusitada. Quando pela primeira vez na história temos um povo preparado para tomar o destino nas mãos, esperamos pelas elites mais uma vez. Infelizmente as elites portuguesas não são uma ínclita geração. Não estão à altura do desafio. Assim sendo, é talvez chegada a altura de deixarmos os telemóveis e a televisão, tomarmos o destino nas mãos, como D. João, o primeiro, o mestre de Avis, que não era suposto ser rei. É que temos tudo, consciência, qualificações, garra, vontade de trabalhar, seria uma pena desperdiçar tudo isto em elites de papel, iguais às que nos (des)governaram durante nove séculos.

Tem os que passam

Tem os que passam, de Alice Ruiz "Tem os que passam e tudo se passa com passos já passados tem os que partem da pedra ao vidro deixam t...