sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Outonidades

A primeira semana no Hotel em Kogoni já passou.


Não sei se o que se vai seguir representa um conjunto de disparates ou se ainda consigo construir linhas de pensamento. Vamos ver.

Num espaço impossível de stressar alguém, de tão calmo, verde luxuriante de árvores frondosas, onde, apurámos esta semana, o antigo presidente do Mali, Moussa Traoré, passava as suas férias, ele que também era um apaixonado pela caça, ouvimos reclamações da comida, nestes 7 dias nunca comemos nada repetido e cada refeição é constituída por entrada, prato e sobremesa.

Vemos pessoas a stressar por não terem muita coisa para fazer. Será possível que tenhamos os sentidos tão embotados que não se possa apreciar os campos de arroz, em todas as fases de desenvolvimento, com extensões até onde a vista alcança. Que não se escutem os mais de vinte tipos de grasnidos vindos de todo o lado a qualquer hora, especialmente de noite fechada, efectuados por aves de todas as cores e tamanhos. Que os nossos olhos se não encantem com lagartos de matizes esverdeadas, azuis, amarelos, vermelhos, simples ou cruzados, em busca incessante de insectos. Que nos passe despercebida a obra de engenharia levada a cabo há largas décadas pelos franceses, que possibilitou aquando da descolonização, que esta região produzisse arroz suficiente para alimentar o Mali e os países limítrofes, embora hoje não chegue para as necessidades internas deste grande país.

Há muitas coisas que não enxergamos porque olhamos sem ver.

Porque ouvimos sem escutar.

Porque tocamos sem sentir.

Estamos tão formatados às nossas cidades que saímos delas apenas para lamentar a nossa falta de sorte.

Sorte danada.

Sentidos embotados.

Aqui o ar tem textura. A água rebenta de tanto peixe. O mais pobre fica feliz porque lhe respondemos ao cumprimento. O Silêncio tropeça em chilreios. O equilíbrio de tão ténue entre o meio e o homem tem tanto de épico como de bíblico. O que tudo dá tudo tira. Aqui não há meio-termo, ou se ama desesperadamente como se o amanhã nunca chegue ou se desespera furiosamente porque não há fumo, carros, barulho, confusão.

Não se pode ficar indiferente num local assim, é uma questão de tudo ou nada.

Por questões de segurança temos escolta militar. Uns preferem destacar a insegurança de tal lugar. Que tanta segurança só pode ser por desgraça iminente. Prefiro pensar que não me pode desgraça alguma atingir quando gente tão qualificada está sempre a postos para se arriscar por mim. Que se ficar atascado na areia, uns vinte tipos na força da idade estão lá para que eu possa seguir. Que é impossível perder-me nestes matos com tantos guias, que policias menos ortodoxos me tentem extorquir algo, quando altas patentes me acompanham.

Nestes tempos difíceis, em Portugal como em todo o mundo ocidental, prefiro ver o copo meio cheio e apreciar cada golo que a vida me proporciona.

Os africanos são muito fatalistas, aceitam o que a vida lhes proporciona. Os europeus são muito contestatários, reclamam por tudo e por nada, muitas vezes sem razão.

Creio que uns têm que aprender com os outros e vice-versa.

Pela minha parte vou tentando compreender. A cada resposta seguem-se dez perguntas. Ainda tenho muito que perguntar.

A jornada ainda vai no começo.

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