segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cinquentenário

 

Neste ano de 2010 comemora-se por toda esta região o cinquentenário das independências. De facto 1960 foi o ano em que por toda a África se multiplicaram as novas nações. A Europa lambia as suas feridas saídas da segunda guerra e concedeu a autodeterminação aos povos que ainda dela dependiam. Que se pode dizer deste meio século? A Europa conheceu um desenvolvimento sem precedentes a todos os níveis, beneficiou de um período de paz duradouro. O nível de riqueza democratizou-se, estando hoje disponível um conjunto de bens materiais, acessível a tantos como nunca na história. As conquistas sociais multiplicaram-se. O bem estar social parecia ser uma via sem retorno. As populações urbanizaram-se, a ponto de hoje por hoje o conhecimento da natureza ser algo distante para tantos de nós. E África? Tornou-se independente. De facto!? A muitos níveis as condições de vida por aqui regrediram. Sendo perfeitamente natural encontrar povoações, sem estradas de acesso, sem energia, sem água potável, sem acesso a cuidados médicos, sem empregos…

Talvez este seja um caminho que tenha que ser percorrido. Talvez haja saída, para esta gente, que tem tanto direito como todos os outros a usufruir deste nosso planeta.

Quanto a mim, a mudança de mentalidades apenas ocorrerá após um caminho árduo mas necessário, que implica várias fases. Construção de acessos, construção de escolas, centros de saúde, seguidos de oferta de empregos. Sem isto não estará para breve o Términus do túnel em que toda esta região se encontra.

Será então que se justifica festejar este cinquentenário? Se os indicadores económicos forem determinantes, talvez não. Se pensarmos que um caminho se faz caminhando e que toda a escada começa a ser escalada pelo primeiro degrau, talvez sim. Erros (graves) foram cometidos, mas quem os não cometeu? Só se cresce depois de ter responsabilidades.

domingo, 21 de novembro de 2010

Tombuctu II

 

Para terminar a estada na cidade mítica uma deslocação ao porto de Kouriomé, ancoradouro que serve Tombuctu, o rio nesta zona apresenta uma largura tal que a margem sul apenas é adivinhada. O “BAC” transporta um camião para a outra banda. É a partir de Kouriomé que podemos partir para uma visita aos hipopótamos. Terá que ficar para outro dia.

De volta a Tombuctu, o comandante Sangaré sugere uma visita ao “Institut dês Hautes Études et de Recherches Islamiques Ahmed Baba de Tombouctou”. Entrámos chamam-nos a atenção para o adiantado da hora. Somos recebidos pelo director o Dr. Djibril Doucoure, as apresentações da praxe, sem grande entusiasmo. O Dr. Doucoure faz menção que pertence aos descendentes do Império do Ghana, anterior ao do Mali e ao próprio Islão, por estas paragens. Ao escutar isso atirei-lhe, “então é Sarakolé, primeiro sorriso, é Soninké!, Largo sorriso, “Ha Kembiré Waga”, um salto na cadeira e um discurso em soninké, ao qual só respondia com acenos de cabeça e sorrisos. O Dr. Doucoure comenta para o comandante, “Isto é fantástico, ele (eu) conhece os soninké e a própria língua”, claro que não me desmanchei e a partir deste momento as horas passaram para segundo plano. Quando referi que era português, disse-me logo que os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao império do Mali e agora estavam de volta. Tombuctu necessita desta estrada como de pão para a boca e nós somos muito bem-vindos. Boa.

Bouya Haidara, chefe bibliotecário, levou-nos então a ver os famosos manuscritos. O primeiro que me chamou a atenção foi um de Avicena, Tratado de Medicina em Verso, o mais famoso filósofo e médico do seu tempo séc. XI, à mil anos portanto, este é também o mais antigo da biblioteca, que conta com mais de trinta mil, já catalogados, não estando o total apurado pois muitos há ainda para catalogar.

Contou-nos de modo resumido a história de Tombuctu, mostrou-nos o acervo da biblioteca e a todas as questões respondeu sempre com inusitado prazer.

Fomos ainda ver a terceira mesquita histórica, já tinha visto a Dingarey ber, construída em 1325, pelo imperador Kankou Moussa, após o regresso da peregrinação a Meca, a Sankoré, do Séc XV, que tem como curiosidade ter um diâmetro igual ao da Kaaba em Meca e que ficou famosa por ter sido o santuário dos intelectuais e a casa mãe da universidade de Tombuctu, fomos então ver a Sidi Yéhia, de 1400, onde estão os restos mortais de Sidi Yéhia Al-Andalusi, famoso arquitecto Al-andaluz, reponsável por boa parte da cidade velha.

Tanta coisa vista em tão pouco tempo. Tanta coisa por descobrir.

sábado, 20 de novembro de 2010

Tombuctu

Estou em Tombuctu. Cidade história. Passado presente. Presente passado. Cidade dos tuaregues, hoje por hoje dos turistas. Estes locais prenhes de história e de estórias depois da descoberta dos turistas passam a dispor daqueles pequenos mimos que (não) dispensamos. Temos bons hotéis. Casas de artesanato. Guias para nos mostrar todos os cantos da cidade.

Tudo tem o seu reverso. As crianças crescem a ver turistas todos os dias e todos os dias os vêm a pagar por tudo e por nada, quando se vê um branco por estes lados é sinónimo de dinheiro a rebentar por todos os lados, todos querem o seu quinhão. Como estou só, e pareço árabe, safo-me.

Tombuctu tem no entanto coisas únicas. As casas são feitas com um tipo de tijolo que só há aqui. As portas são enormes, de madeira maciça, com grandes batentes metálicos e intrincados motivos também metálicos, que tornam cada porta numa peça única. Como apenas uma cidade antiga e importante pode ter, Tombuctu tem muitas bibliotecas. Antigas bibliotecas, que estão ao cuidado da mesma família há séculos. Aqui também há muitos historiadores. Centros culturais. Mesquitas construídas em terra com mais de sete séculos. Um mercado de artesãos cuidado e com artigos (ainda) genuínos.

O deserto está aqui à porta, melhor, adentro mesmo da cidade, a lembrar aos homens, que se esta é a capital do deserto, o deserto reserva-se o direito de reclamar o que é seu.

Quem possa pensar vir até aqui deve ter em conta, Tombuctu é longe de quase tudo. Os acessos (ainda) são maus. Podem sempre vir de avião, mas aí o choque será sempre diferente. Quem venha da Europa e aterre em Tombuctu, não terá feito a adaptação que quase mil quilómetros necessariamente fazem. Não terá visto a mudança da paisagem. As povoações que lutam por existir num ambiente agreste. As pessoas que se dedicam à sobrevivência diária, umas com os seus rebanhos, outras com a pesca, outras cultivando os campos. Atravessar tudo isso como fizemos ontem, quinhentos quilómetros em dez horas sem parar, mostra-nos uma Tombuctu com outra luz, com outro encanto. Beber aqui o chá com os tuaregues, não é somente beber o chá, é providenciar aos sentidos algo amargo, doce, quente, aromático, num ritual que nos faz sentir pertença e não sermos um objecto estranho que caiu do céu.

Em Janeiro próximo realiza-se aqui o festival do deserto. Um festival de música. Com músicos de todo o mundo. Até recentemente este festival realizava-se a cerca de setenta quilómetros de Tombuctu, deserto adentro. Numa zona de difícil acesso, sem água, comida ou sombra, curiosamente, talvez devido às circunstâncias particulares de segurança que vivemos, o festival realiza-se agora mesmo às portas da cidade e são os próprios habitantes que realçam o gosto perdido de antanho. Passou a ser um festival (quase) como os outros. Pode-se estar num confortável hotel, ir ao festival e regressar para um duche e uma noite reconfortante, para voltar no dia seguinte.

Tombuctu é a cidade dos 333 santos. Cidade que há já muitos séculos prega o islão. A primeira universidade subsaariana existiu aqui desde o século treze. No quarto do hotel onde estou, numa mesa-de-cabeceira tenho o sagrado Corão, em inglês e Árabe, na outra tenho a sagrada Bíblia, em Francês.

Há aqui bares com música ocidental e bebidas alcoólicas.

Tombuctu perdeu a aura mítica, com que atravessou muitos séculos. A sua fama de riquezas atraiu tantos a partir à sua descoberta e tão poucos viram recompensada a sua empresa… Talvez o seu futuro esteja no seu isolamento, mas também nos seus acessos. Nos seus tesouros, mas também nos seus turistas. Na sua história certamente, mas também na sua capacidade de inovar. Nos seus habitantes, mas também nos estrangeiros que aqui queiram investir, como o novo hotel Líbio, prestes a abrir, que para além do aspecto magnífico, tem acesso a uma praia banhada por água trazida por um canal desde o vizinho rio Níger…

Com todas as suas contradições, se vale a pena a viajem? Certamente.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Tabaski

 

O Aid El Kebir, significa literalmente a grande festa, é a festa mais importante do islão.

Aqui no Mali, bem como no Senegal ou Mauritânia é apelidado de Tabaski.

Segundo a história a festa Aid El Kebir comemora a subserviência de Ibrahim (Abraão) a Deus, que lhe ordenou o sacrifício do seu filho Ismael. A não hesitação de Abraão em sacrificar o seu filho Ismael para mostrar a sua submissão a Deus é para os muçulmanos o modelo do crente, sendo assim o primeiro muçulmano e o mensageiro de Deus. A mensagem do profeta Maomé regressa às tradições de Abraão e é por isso que os muçulmanos celebram o Aid El Kebir.

Este pequeno resumo de uma passagem do Velho Testamento representa então a maior celebração anual para os muçulmanos, nesta data termina também o Hadj, a peregrinação anual a Meca.

É então dia de Tabaski hoje aqui no Mali. Dia de grande fervor religioso. Para nós é apenas uma curiosidade, meio estranha, tanto como o dia de Natal para as pessoas daqui.

Na prática a influência deste dia na nossa estadia é um feriado, aproveitado para o lazer e o convívio.

Amanhã vou a Léré. Vou fazer todo o traçado da nossa estrada. A partir do hotel ir e vir representa perto de 400 km, vamos ver se dá para ir e voltar no mesmo dia…

domingo, 14 de novembro de 2010

Aniversário

Uma década.

Completada.

Uma vida, só iniciada.

Duma flor, só uma pétala.



Dez anos, tanta coisa para contar.

Tantas voltas a vida deu.

Para mim és só meu.

Uma vida a despontar.



Estou longe, muito longe…

Quem dera aí estar,

Poder te abraçar



Estou longe, muito longe…

Em África, nesta imensidão

Mas sei que estás, junto ao meu coração!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

S. Martinho

Tão longe que está, o S. Martinho pois claro. De frio nem novas nem mandadas. Por aqui ainda no período pré-stress, que antecede o início “a sério” de cada obra. O assunto primevo que nos une continua a ser gastronómico. Como encaixar um grupo de brasileiros e portugueses numa cozinha francesa, feita por um “chef” maliano? Os mais velhos nestas artes de trota-mundos vão aportando a água ao moinho. Aqui o Carlão tomou em mãos a árdua tarefa de mostrar aos franceses que em matéria bucal, se gostos não se discutem, pelo menos modificam-se e educam-se. Temos então uma cozinha em lenta adaptação ao famoso churrasco brasileiro. Onde até ao momento a tarefa tropeçou foi na aquisição do famoso feijão, algo distante destas paragens. A minha horta terá de esperar pela conclusão do estaleiro, pois por enquanto não há “condição”.


Os mosquitos continuam sem dar tréguas, a esta hora tenho mais furos que rede de pesca. O jardim do hotel é varrido todos os dias, pois as enormes árvores que compõem todo o complexo largam mais folhas que impostos os portugueses irão entregar ao “Grande Timoneiro” no próximo ano… A verdura e a relva são regadas todos os dias. É bonito ver como um pouco de ordem continua a fazer diferença neste mundo, conseguindo tornar aprazível um local que parece ter caído de outro planeta, tal a diferença para tudo o que nos rodeia…

Quem vem aqui caçar, tem garantida a possibilidade, assim queira, de caçar todos os dias, de manhã à noite de Novembro a Abril. Tem pisteiros, para achar e levantar a caça. E tem um cozinheiro empenhado em transformar o resultado desse esforço em iguarias de fazer crescer a água na boca.

Os Nossos anfitriões, o Joel e a Elizabeth, fazem tudo para que nos sintamos em casa. Até hoje o Mali tem sido simpático connosco.

domingo, 7 de novembro de 2010

Churrasco

Fizemos hoje o nosso primeiro churrasco maliano. Decidimos que era hora de começar a criar espírito de grupo, nada melhor que um belo churrasco. Comprámos o carvão. Depois para alguns menos experientes o simples acto de comprar uma pouco de carne num “talho” daqui é algo inolvidável. O pessoal só diz que a ASAE está longe. De facto não está nos hábitos portugueses comprar carne num balcão à beira da estrada de terra batida, com cobertura de moscas e pó. Só vos digo que estava divinal. Esta semana começámos os trabalhos de preparação do estaleiro. Os contentores devem começar a chegar no próximo domingo. Já temos 20 km de projecto aprovado. A água não deve ser um problema, o que atendendo à nossa localização não deixa de ser muito positivo.


A deslocação a Nampala foi proveitosa porquanto estive com os topógrafos que estão a fazer o levantamento da obra, conheci a estrada até perto da metade. Apercebi-me melhor do que nos espera. A viagem até foi engraçada, pois os militares que me acompanharam caçaram um grande lagarto, um varano, para o almoço, safei-me porque o Idir, responsável do projecto me ofereceu manjar, caçaram o dito com um pau. Iam mais felizes que crianças com rebuçados.

A temperatura baixou um pouco de noite, já é possível dormir sem ar condicionado. Com um pouco de sorte os mosquitos também irão dar uma volta, pois começa a ser difícil viver com tanta comichão.

Comprei um telemóvel que é uma cópia genuína de um Nokia topo de gama, que isso de cópias clandestinas não é comigo… Este tem site na internet e tudo. Explica lá bem o que é uma cópia genuína, para quem tenha dúvidas.

O que tem de bom ir para um país novo é ficar a conhecer algo sobre o que se passa aí, que nunca nos tinha passado pela cabeça. Por exemplo, os franceses colonizaram quase todo o sahara. Ao contrário do que os portugueses fizeram no Brasil dividiram esta região em múltiplos países. Os tuaregues ficaram divididos em seis países, sendo minoritários em todos eles. Isso originou pelas regras democráticas (?) uma subordinação a outros povos. Como são um povo livre (leia-se nómada) isso gera desconfiança nos gregários. Ou seja passaram de habitantes livres e senhores de um território imenso, quase semelhante à Europa, a desalojados sem casa e cuja causa esbarra nos petróleos desejados por tantos. E por tal desejo, as mais antigas democracias “esquecem-se” da história. Como estes eventos são ainda historicamente recentes a poeira ainda não teve tempo de assentar e as fronteiras são linhas traçadas a esquadro num gabinete europeu. Prevejo que ainda vamos ouvir falar de qualquer guerra por um punhado de areia, que nós europeus civilizados não compreenderemos.

Por falar em guerras, está em desenvolvimento um aumento grande da área de regadio onde estamos. Para arroz. Os pastores que vem do norte em busca de água e pastos para os seus rebanhos imensos não irão achar muita piada. Os pescadores que vivem na região do delta também não irão ver os seus rendimentos aumentar. Mas o aumento incessante da população obriga a reclamar cada vez mais meios para produzir alimentos. Aqui em zonas onde o equilíbrio é precário dá para se aperceber melhor do risco que (todos) corremos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

S. Martinho

Agora que Outubro já lá vai e entrámos definitivamente no mês do S. Martinho, por aqui abriu a caça no primeiro do mês. Novembro deveria ser um mês “algo” fresco, digo deveria, porque não está nada a ser, a temperatura só baixa ligeiramente dos trintas noite dentro. Não estou propriamente a queixar-me da temperatura, principalmente agora que por aí as coisas arrefeceram bastante, o problema, são os insectos. O meu corpo está que parece do Benfica, de tão vermelho. As picadas destes pequenos monstrinhos sucedem-se, dia após dia. Picam-me por cima da roupa, na rua, no quarto, quando vou à casa de banho… Então a minha esperança é que por alturas do S. Martinho, já que vinho provar não vou, pelo menos que o ar aqui mude um pouco e leve estes terroristas até à próxima estação das chuvas.


Hoje definimos a nova localização do nosso estaleiro, amanhã vou marcar os limites e se tudo correr normalmente, irei até Nampala, encontrar-me com os topógrafos que estão a fazer o levantamento do terreno para a execução do projecto. Nampala marca uma fronteira na insegurança. Já fica na considerada zona vermelha, foi alvo de um ataque dos rebeldes à dois anos, é também uma localidade praticamente na fronteira com a Mauritânia. Marca também o fim da região de Ségou, a partir daqui seguem-se terras de Tombuctu. A equipa de projectistas e topógrafos é argelina.

A cozinha continua digna de um hotel em qualquer parte do mundo. O que me faz sorrir. Se alguém me dissesse que eu vinha para uma zona remota do Mali e que a cozinha que nos fornece a paparoca era “Haute-cuisine française” eu responderia que tudo é possível, mas muito pouco provável. Ainda bem que as probabilidades existem. Meu rico 0.1%! De referir que em duas semanas de estadia e com três pratos por refeição, ainda não houve repetições.

Ontem conheci três israelitas. Dois romenos. Três norte-americanos. E outros cuja origem me não foi revelada. Até parece que estou numa região cosmopolita!

Tem os que passam

Tem os que passam, de Alice Ruiz "Tem os que passam e tudo se passa com passos já passados tem os que partem da pedra ao vidro deixam t...