Incompleto
Sinto-me incompleto.
Perguntareis por certo por que me assomou tal sentimento.
Que ideia será essa de se sentir incompleto?
Perguntais bem. Não é usual tal sentimento dominar alguém, a
ponto de se destacar, a ponto de merecer honras de título.
Mas como poderei expressar o que me vai na alma, se de facto
incompleto é como me sinto.
Li algures que “Podes ir longe só com as pernas, mas se
usares a cabeça podes ir mais longe”. Concordo em absoluto.
Quando vemos a civilização que a europa construiu nestes
últimos séculos, prestes a ruir quando estava tão próxima de conseguir o que
apenas tinha sido imaginado. Quando o sistema democrático está a pontos de ser
implementado em quase todo o planeta, por pressão europeia, vemos que em apenas
duas ou três gerações a degeneração dos líderes políticos atingiu um grau
inimaginável. Quando atingimos uma sociedade “quase” laica, após séculos de
jugo religioso, vemos meio mundo prestes a iniciar uma guerra religiosa. Quando
a tecnologia chega a quase todo o mundo, permitindo a realização de tarefas
quase impossíveis há poucos anos, meio mundo deixa de ter acesso a ela por ter
perdido o emprego. Quando os bancos, após quarenta anos a subornar os
políticos, conseguem a “desregulamentação” dos mercados, de um modo quase
absoluto, como sempre desejaram, destruíram a economia como na grande depressão.
Quando os jovens têm acesso à educação, não conseguem emprego. Quando
conseguem, ganham o salário mínimo. Quando temos finalmente acesso à saúde, os
hospitais começam a fechar.
“Que vida é esta, amigo?”
Só me faz lembrar que estamos a cozinhar o jantar que sempre
sonhámos e quando já cheira, a mesa está posta, a conversa está maravilhosa,
ouvimos alguém dizer “acabou o gás!”
Sinto-me incompleto.
Ou será Anacleto?
Talvez analfabeto…
É mesmo incompleto!
Quando sabemos que os
offshores vampirizam por completo a economia e não os fechamos…
Quando os bancos ganham mais a especular que a financiar a
economia e os deixamos continuar…
Quando os políticos não são responsabilizados pelo resultado
das suas ações…
Quando temos um País à míngua e deixamos nomear milhares de “Boys”…
“Quando Vemos, Ouvimos e Lemos, não podemos ignorar!”
E é aqui que queria chegar!
Quando tantos têm acesso a tanto e deixamos tudo ir pelo
cano abaixo, algo não bate certo. Só pode ser porque embora tenhamos acesso a
tanto, não usamos a cabeça para pensar. Não é à toa que a moda é ouvir os
comentadores. Nunca houve tantos comentadores. Ele é comentadores na TVI, na
SIC, na RTP, nos jornais, nas rádios. Pagos a peso de ouro. Para nos dizerem
aquilo que queremos ouvir. Ou aquilo que pensamos que queremos ouvir. Ou aquilo
que querem que pensemos que queremos ouvir.
Porque sempre as conversas de escárnio e mal dizer fizeram
sucesso no nosso retângulo, ouvimos os comentadores zurzirem em todos que
contam e nós batemos palmas.
Os comentadores têm tanto mais audiência quanto mais
pauladas afinfarem. Quanto maiores as audiências mais eles ganham. Mais palmas
nós batemos.
Sinto-me incompleto!
É paradoxal como o sentimento de segurança corrompe as
pessoas. Enquanto temos algo a perder não damos um passo. Depois de perder tudo
vamos à guerra. Quando vivemos em ditadura arriscamos a vida pela democracia,
quando vivemos em democracia, preferimos a novela e o futebol.
Se tivéssemos aprendido algo com a natureza, seria que nunca
devemos baixar a guarda, nunca podemos contar com nada garantido.
“Inquietação, Inquietação”
Ficámos moles, só queremos jogar, somos crianças velhas. Ou
velhos crianças. Como quiserem.
Sinto-me incompleto!