Chegou o dia
esperado. Era um domingo diferente. Embora a saída não fosse logo pela manhã,
acordei cedo. Aproveitei para ler um pouco. Por volta das dez e trinta estava
no local de partida. Já lá estavam alguns colegas. Pelas onze e pouco partimos
para a expedição acordada.
Mais um dia de
calor, iríamos fazer a viagem durante o período mais quente. A deslocação
decorria em bom ritmo, pese serem cinco as viaturas. Depois de algum tempo
deixámos de ver a Ranger que circulava atrás de nós. A cobertura de rede
telemóvel ainda deixa muito a desejar. Estávamos numa zona sem cobertura.
Parámos todos e esperámos. Algum tempo depois chegou a retardatária. Estava a
aquecer. A vantagem num grupo como este é que é bastante ecléctico, logo foi
identificado o problema, radiador. Como houveram desistências, lográmos
transferir carga e ocupantes para as restantes viaturas. A Ranger avariada
voltou à base, nós continuámos, ainda tínhamos mais de quatro horas de viagem à
nossa espera.
A passagem pelo
Waku Kungo foi uma surpresa. O antigo colonato da Cela, ainda surpreende pela
positiva, comparando com o que conhecemos de Angola. Leva-nos a imaginar como
foi e podia ter sido...
No Alto Hama
deixámos a N120, para o Huambo e tornámos à direita pela N250 na direcção do
Lobito. Chegados a Ussoque, abandonámos o asfalto e entrámos nos últimos dez
quilómetros que demorariam uma hora inteirinha a ser percorridos, balançando
tanto que mesmo no mar alto um barco pareceria mais simpático para estômagos
fracos.
Finalmente as
majestosas montanhas estavam frente aos nossos olhos, chegámos a Kanjonde
estava a decorrer uma partida de futebol, tivemos que atravessar o “estádio” para
entrar na aldeia, as crianças não quiseram mais saber de futebol, queriam ver
os estranhos que lhes invadiam a vida.
Veio o Soba, apresentámos-lhe os nossos
cumprimentos. Escolheu-se o sítio para a base, no alto após a aldeia. Começámos
a montar as tendas e logo veio a chuva e o vento e a noite. Tudo junto. Mais
uma trovoada imensa. O frio começou a apertar, apanhando-nos de supetão. Logo a
mim, que pensava que nunca iria necessitar de algo mais que uma T-shirt ou uma
camisa. Foi complicado acender o carvão nestas condições. Mas para um
churrasco, convidado que não pode faltar é o carvão. Fizemos uma cobertura
improvisada com um plástico entre duas carrinhas. Os “pilares” representaram uma
invenção, se a segurança visse...
Apareceu uma
guitarra e rolaram canções. O vento, a trovoada e a chuva, não devem ter
gostado pois intensificaram-se tanto que as trovas acabaram cedo. Uma das
tendas tinha voado rumo ao infinito. A noite prometia. Só pelas 4 da manhã
houve tréguas.
O despertar foi
cedo, pelas 5 e meia. Pelas caras percebia-se que a noite não tinha sido muito
bem dormida. Comer alguma coisa. Preparar as mochilas, água, sumos e algo para
comer. Vieram os guias, o Domingos e o Celestino. Saímos pelas 7 horas. A chuva
voltou. O frio não chegou a partir. A paisagem linda de morrer. Duas linhas de
água não muito profundas, não fizeram mossa na equipa, o terreno continuava praticamente
plano. Após cerca de dois quilómetros iniciámos uma descida íngreme, mais de
cem metros, inclinação superior a cem por cento, lançaram o primeiro alerta,
como seria no regresso? Após a subida ao Cume?
Um campo de
milho e um riacho de águas límpidas a chamar para um banho, talvez mais tarde,
que ainda friava bastante. Continuava com um polar, nunca tinha utilizado tal
adereço por terras africanas. A subida começou brutal, sem aviso prévio. A
margem esquerda do riacho continuava no mesmo registo em que terminara a
direita.
Vimos umas
pequeninas flores amarelas, a planta completa consistia em apenas quatro
folhas, carnudas, abertas a proteger a pequena flor. Nunca tínhamos visto tal. Após
uns 200 metros terminou o espectáculo. As tais flores desapareceram, elas que
seriam umas boas centenas no caminho que acabáramos de percorrer. Algumas
árvores raquíticas ponteavam a paisagem. Mais uns riachos, pequenos mas
ruidosos, foram atravessados. O terreno continuava fácil. Virámos. Terminou o
flanqueamento. O nosso desafio estava em frente. Iria começar a subida. Encosta
arborizada, coisa rara por estas bandas. Não sei se as pequenas árvores são o
que resta, ou se são a floresta típica desta zona.
A subida
empinou, o terreno apresentava-se agora, rochoso. O arvoredo cedo acabou.
Depois de uma curva, um belo vale verde apresentava-se aos nossos olhos. O Morro
do Moco, finalmente à vista. Ui. Tão alto... O solo negro e fundo, o capim de
folha larga. O guia disse-nos que traziam os bois até ali para pastar. Parou a
chuva e logo despontou sol inclemente. Polar e chapéu fora. A roupa estava mais
molhada que depois de lavar, junto suor e chuva.
As pernas
continuavam soltas. Permanecia no grupo da frente, logo atrás do Domingos, que
por estas horas já caminhava descalço, pois as suas Havaianas tinham desistido
de ser calçadas...
Última etapa da
subida. Começaram as dificuldades. O chão fundo não oferecia resistência ao
peso e afundava um pouco, o suficiente para tornar uma subida difícil, num desafio
quase intransponível. Comecei a descolar. Primeiro um, depois dois e finalmente
três, passaram-me. As passadas começaram a ser intervaladas, após cada duas ou
três, por paragens cada vez mais frequentes. A subida era agora feita em ziguezagues.
Chegámos ao cimo. Ufa. O cume do Morro do Moco. O ponto mais alto de Angola.
2620 metros acima do nível do mar. A vista é linda. De cortar o fôlego.
Desfrutamos todos os 360°. Tudo verde. O Huambo é lindo. O resto do pessoal ia
chegando. A satisfação de terminar a subida era visível nos rostos cansados. As
fotos da praxe, cada qual por si. Depois todos juntos. Foi aí que me apercebi
da minha grande falha. Não levei a Portuguesa. Os brasileiros tinham a sua
verde-amarela com a “Ordem e Progresso” e o Cruzeiro do Sul. Os angolanos a
rubro-negra com a catana e a roda dentada, mostrando a tradição e o futuro,
apenas eu, único português, fiquei sem bandeira. Imperdoável.
Chegou a faixa
com os dizeres “Expedição ao Morro do Moco – Odebrecht – AH Cambambe – 11/11/2012”,
fotos “oficiais” dos expedicionários que atingiram o objectivo.
Começou o
regresso, mais sete quilómetros aguardavam por nós. Início rápido, quase em
corrida, para vingar o chão que tantas dificuldades dera na ida. Sempre na
linha da frente, sempre em passo rápido.
O grupo começou
a abrir brechas, deixámos o guia numa zona onde podia haver dúvidas para os que
nos seguiam. Chegámos rápido ao ponto mais baixo do trajecto, o riacho de águas
límpidas e convidativas, apenas a 1700 metros, 900 metros abaixo do cume.
Alguns seguiram para a base, para começar o almoço, eu rápido despi a roupa
transpirada e entrei na água gélida, nunca me soube tão bem um banho gelado. As
pernas que tinham começado a doer, agradeceram, os pés maltratados, agradeceram
mais ainda. Faltava pouco.
Vestir e
arrancar para a etapa final, fácil. Fácil? Só para quem está desatento. Logo no
início alertei para a dificuldade desta zona íngreme. Foi nesta subida que
experimentei as maiores dificuldades. A dor nas pernas voltou inclemente. Os
dois quilómetros finais pareceram duas eternidades. Os dois Valinhos da ida,
transformaram-se em canions profundos, a aldeia nunca mais aparecia. Os meus
sonhos iam todos para uma Cuca gelada.
Finalmente Kanjonde.
Nunca um aglomerado de casas de terra e telhados de colmo, me pareceu tão
convidativo. As crianças, imensas, rodearam-nos, com olhos cheios de
curiosidade e barrigas cheias de fome, ou olhos cheios de fome e barrigas
cheias de curiosidade.
Fomos bebendo
água, que terminara. E na ausência da Cuca, foram umas cinco Cristal,
portuguesas. Mais umas picanhas grelhadas, muita fruta. Tudo arrumado, tendas e
lixo, não ficou nada para trás.
Havíamos chegado
há duas horas e ainda faltava gente. No horizonte duas trovoadas. A chuva
regressou à aldeia. O sol baixava. O frio reclamava o seu lugar. Finalmente o
grupo completo. Partida de regresso a Cambambe, seis horas de viagem.
Em Cambambe às
dez da noite. Calor. Chuva nem vê-la. Frio? Ná...
Foi assim que
comemorámos a independência de Angola, doridos mas vivos e com vontade de
trabalhar neste país. Vontade de produzir muita energia eléctrica, para que as
crianças de Kanjonde não continuem a ter a escuridão por companhia todas as
noites.
Deixámos livros
e lápis ao Soba, para que pudesse distribuir pelas crianças, que são quase duzentas
numa aldeia de trezentas almas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário